segunda-feira, 26 de abril de 2021
CRISE verborrágica I
sábado, 3 de abril de 2021
Purgante I
quarta-feira, 31 de março de 2021
Subliminus Sutra
Fazia pouco tempo em que ele travava pequenos contatos randômicos com ela por carta. Todavia, já se sentia encantado com os traços tão lineares e singelos do rosto dela nas fotos que ela mandava, com o sorriso que ela sempre mantinha nos lábios, com o olhar que fazia ele se perder num labirinto profundo e embriagante. Ela se dizia dançarina, mas ele a via não como ele, como mais um simples artista, mas como Arte pura, indivisível. Insistia em dizer a ela que ela não era uma dançarina como dizia, mas sim uma dança em si, continuamente. Em todas as ações cotidianas dela, no seu andar pelas ruas tumultuadas de São Paulo, nos eventos e festas por onde fosse, ou mesmo dormindo... Concebia ela como uma dança, como perfeita harmonia contínua. Por vezes, dizia a ela que a achava maravilhosa, e que isso era uma coisa que o sufocava e que ele tinha que expressar, colocar pra fora, e ela não sabia o que responder. Mas nem ele próprio esperava uma resposta. Não esperava mais nada dela a não ser que ela fosse.
Não a desejava. Era um processo sutilmente inverso de desejar, de querer possuir. Ela trazia para ele uma espécie de angústia satisfatória. Ela não lhe incitava desejo, muito pelo contrário – a existência dela mostrava a ele quão pequenos eram os desejos que ele tinha. Transbordava de prazer em estar consciente do simples fato dela existir em algum lugar, em tentar cativá-la com todas as palavras possíveis, mas sempre com cautela para não assustá-la com tanta falta de lógica. Ele se esforçava muito para não constrangê-la com algo tão grandioso. Continha-se, pois não deveria, seria um crime causar qualquer tipo de mal estar num ser tão delicado. Sentiria-se um monstro. Ele sabia que ela era única, e até sentia-se mal às vezes, quando falava com ela, por ser tão incomodativo, perturbante como uma mosca, como se estivesse entrando em contato com algo além, como se estivesse fazendo algo de errado, como se estivesse roubando balas que não eram pra ser dele. Nem ela mesma era consciente disso, como os santos que não sabem que são santos, como um cego que nunca se olhou no espelho. Mas ele percebia, exatamente por estar distante, que ela era muito mais do que assimilava ser.
Permitia a si mesmo dissolver-se nela durante certos momentos, ouvindo Tool com a música Reflection – fechando os olhos, imaginava ela dançando, de forma progressiva, com sutilezas, dando o prazer da sua dança à existência, como algo natural, sem esforço, como o desabrochar da mais linda rosa, daquelas que não são arrancadas, daquelas que fazem parte de uma bela paisagem, sem serem mortas por mãos que buscam algo, seja dinheiro vendendo a rosa, seja querendo buscar o afeto de alguém em especial, ou seja o que fosse. Apenas fazendo parte de um todo, apenas sendo. Deixava-se levar, dissolvia-se na música, com ela na mente, e um arrepio o percorria por todo corpo. Imaginava então as mãos dela deslizando pelo ar, mais leves que este, sutis como uma pluma. As roupas tocando suavemente sua pele, seus pés em passos gracejados e flutuantes, descalços, tocando o parquê, num embalo que acompanhava todos os seus movimentos perfeitos e harmônicos, em arcos traçados no espaço, seguidos pelos seus graciosos fios de cabelos... tudo em uma delicadeza quase estática. Ele não existia nesses momentos, não poderia estar no meio, não verbalizava, não ficava. Perdia-se no sorriso, no olhar, no tangente do ventre. Sumia, como a platéia indigna de vê-la deveria sumir.
Seus olhos embotavam-se, umedeciam, e um nó prendia sua garganta, mas eram sensações maravilhosas. Era quase como o estopim de uma explosão, como vislumbrar o Paraíso. Ele, na distância, conseguia assimilar a dança dela de uma forma muito mais profunda do que a amortecida platéia que a “apreciava”, estando tão perto, porém tão longe...
E se caso houvesse a possibilidade de conviver com ela, e se por acaso atingisse seu patamar evolutivo, até mesmo buscaria ser o amante mais suave que pudesse ser. Seria difícil, entretanto, para ela conceber suas concepções sobre isso: não andaria segurando ela pela mão ou sufocando-a com abraços, como os casais nas ruas, querendo mostrar inconscientemente que cada um é posse do outro. Não convidaria ela para casar, não colocaria alianças em seus dedos, não a prenderia com algemas tão horríveis. Não a convidaria para morar com ele, nem ficaria 24 horas ao lado dela – mas escreveria lindos poemas para ela, e deixaria pequenas surpresas nos lugares em que ela fosse. Também não teria por ela ciúme. Não teria nenhum dinheiro para comprar para ela presentes no Dia dos Namorados, e mesmo que tivesse, não reduziria ela como SUA namorada – mas como um ser único, que merece muito mais do que um dia para celebrar uma união tão ímpar. Não a colocaria no lugar de uma doméstica, cuidando de um lar, designada a ficar assistindo novelas enquanto esperasse ele chegar do trabalho – mas por vezes iria convidá-la para jantar fora, ou ver um filme, ou apenas pra sentar num canto, sentindo ela abraçada com ele, aquecendo-se do frio e rindo de algumas pessoas que passassem por eles.
Somente gostaria de conviver com ela, compartilhando momentos que seriam só deles, e ele sentiria o maior prazer em apenas ser um vetor para a satisfação dela. Ele faria de tudo para ela não ser um pássaro preso ao seu lado, mas um pássaro livre, gracejando nos ares, para ele mesmo ver ela resplandecendo no céu azul, voando livremente, e que sempre que se sentisse fatigada ou triste, voltasse para a companhia dele, por livre e espontânea vontade...
Esperaria, não haveria mais nada a fazer, e até a espera seria boa. Ficaria sempre com ela guardada consigo, seja onde fosse. De certa forma, ela estaria com ele, nos lugares por onde andasse, e principalmente quando estivesse sozinho. E isso tudo seriam fatos que ela nunca saberia. Mas, de qualquer forma, como aprovação, ela continuaria sorrindo para ele nos seus sonhos... Sublime, como algo de natureza intocável.